Não faz muito tempo que o massacre do jornal satírico francês Charlie Hebdo aterrorizou a França. O ato de terror que resultou na morte de doze pessoas abalou a imprensa mundial e chamou a atenção dos governos democráticos. Mais que um atentado contra a vida, o chacina representou um ataque à liberdade, princípio ironicamente herdado da Revolução Francesa que sustenta as democracias constitucionais. A comoção foi tamanha que mais de três milhões de pessoas, incluindo 40 líderes mundiais, marcharam pelas ruas da França em homenagem às vítimas e em defesa da liberdade de expressão. Estampada nas camisetas, nos jornais e nas redes sociais, o grito das ruas ecoou além-fronteiras: a campanha Je suis Charlie Hebdo ganhou o mundo.

A ativista paquistanesa laureada com o prêmio Nobel da Paz, Malala Yousafzai, sabe o valor da liberdade. Símbolo da luta pelos direitos humanos para as mulheres, Malala quase pagou com a própria vida o desejo de frequentar a escola. A autoria do ataque foi anunciada pelo Talibã que, à semelhança de outros grupos fundamentalistas islâmicos, persegue pessoas, principalmente do sexo feminino, que não vivem da forma como entendem ser moral aos preceitos do alcorão.

A perseguição a cristãos na Nigéria pelo grupo terrorista islâmico Boko Haram escandalizou o mundo pelo elevado grau de crueldade dos atos violentos. Pessoas foram queimadas vivas por causa da crença religiosa. A intolerância e o fundamentalismo religioso, seja ele qual for, é o mecanismo de cerceamento da liberdade. Quem ousa ser livre e enfrentar a opressão corre o risco de perder a vida.

A repercussão da última parada gay de São Paulo, salvo as devidas proporções, assemelha-se ao cenário de intolerância e fundamentalismo religioso dos radicais muçulmanos. Parlamentares das bancadas católica e evangélica organizaram uma manifestação no Plenário da Câmara dos Deputados em repúdio à encenação da atriz transexual Viviany Beleboni, que representou a crucificação de Jesus.

Quem não leu a Bíblia certamente deve ter ouvido a história de Maria Madalena. A mulher que deixou a prostituição para seguir Jesus foi salva da hipocrisia do ser humano. Prestes a ser apedrejada, Maria Madalena passou momentos de terror devido às agressões e humilhações sofridas. Dois mil anos se passaram, o registro bíblico permanece, mas o ensinamento se perdeu. Ainda presenciamos milhares de Marias vítimas do preconceito. Embora tenha mostrado que ninguém era digno de julgar o próximo, Jesus, que havia sido santo em terra, não escapou da condenação pública.

Viviany Beleboni escancarou para o mundo que a hipocrisia ainda persevera em nossa sociedade e, acima de tudo, que a liberdade plena ainda está longe de ser conquistada. Ainda que a Constituição Federal determine a laicidade do Estado, há quem use a bíblia para justificar que mulheres e homens não podem ter relacionamentos homoafetivos. Ironicamente, reza o livro sagrado dos cristãos que Deus, em prova de seu amor, deu à humanidade o livre-arbítrio.

A luta pela liberdade é o que aproxima a ativista brasileira da ativista paquistanesa, pois ambas querem ser livres para viverem conforme suas convicções pessoais. Malala é muçulmana e vive num país muçulmano, mas luta contra o extremismo islâmico altamente machista. Viviany é transexual, vive num país laico e luta contra a homofobia.

As liberdades individuais estabelecidas no Artigo 5º da Constituição Federal garantem a todos a liberdade de expressão, de pensamento e de ação. Ninguém pode ser obrigado a se enquadrar em padrões de comportamento estabelecidos, tampouco o direito de opinião pode ser cerceado. É legítimo discordar do relacionamento afetivo entre pessoas do mesmo sexo, no entanto é um atentado contra a Constituição ofender ou tentar impedir a liberdade das pessoas de serem o que são ou de fazerem o que querem. Deve-se ter cuidado com o intuito perverso de opressão da liberdade de comportamento com o pretexto do exercício da liberdade de expressão.

A crucificação de Cristo é um bom recurso para simbolizar as atrocidades cometidas pelo ser humano. O artista cubano Erik Ravelo, em sua obra intitulada “Los Intocables”, crucificou crianças em adultos para denunciar os abusos cometidos contra a infância no mundo inteiro. Da mesma forma, a artista brasileira representou por meio da crucificação os crimes praticados contra os homossexuais. Viviany tentou sensibilizar a todos encenando o sofrimento de Jesus diante da ganância e intolerância do homem. Mas sua crucificação causou-lhe um apedrejamento de ofensas motivadas pelo ódio.

A fé como instrumento de dominação e opressão é lesiva para a dignidade da pessoa humana. É preciso ter sensibilidade para entender que em maior ou menor grau todos sofrem com cerceamento da liberdade. A humanidade padece todos os dias com a morte de vítimas da intolerância. São mulheres paquistanesas, cristãos nigerianos, homossexuais brasileiros que sonham apenas em ser livres. O parlamentar cristão que não se compadece com a aflição do homossexual, se não tiver pecado, que atire a primeira lâmpada.

*o artigo não expressa necessariamente a opinião deste site