Acúmulo de objetos, imóveis cada vez menores, crise econômica, vontade de ter mais mobilidade… Uma série de transformações nos impulsiona na busca por harmonia dentro e fora de casa. Pouco a pouco a decoração de ambientes vai cedendo mais espaço para o espaço

Em 2016 “ASMR” foi um dos termos mais procurados no YouTube, à frente inclusive das geralmente estrondosas buscas por “chocolate”. Foi isso que revelou um report de tendências do Google publicado recentemente. Os ASMRs são vídeos que provocam uma espécie de massagem cerebral misturando alguns barulhos específicos a narrações sussurradas (a sigla, em tradução livre do inglês, quer dizer algo como “resposta sensorial autônoma do meridiano”). E o que isso tem a ver com decoração? Bem, se existe uma busca massiva por relaxamento através da tela de um computador, é bem provável que esse interesse se reflita também dentro de casa.

Não podemos simplesmente afirmar que o bem-estar, como se ouve por aí, é o novo luxo. “Desde o século 13 as pessoas querem conforto, por exemplo, improvisando lareiras pela casa”, lembra o sociólogo Fabio Mariano. O que muda, explica ele, é o que é sinônimo de bem-estar em cada época, afinal, o consumo em si começa quase sempre com a busca pelo prazer.

Hoje existe uma preocupação muito maior com o conforto sensorial que a decoração pode proporcionar. Por isso, banheiros vêm sendo reconfigurados como salas de banho, o domínio do verde ganhou os ambientes indoor, e a tecnologia ajuda a digitalizar o que antes eram objetos acumulando pó nas prateleiras. “A ideia de bem-estar está associada com a saudabilidade: desde a casa em que moramos até a comida que colocamos na mesa, a harmonia é o conceito que prevalece em um mundo cheio de excesso e de estímulos”, arremata Fabio.

Acúmulo = estresse
Consultor de Feng Shui e mestre em Arquitetura e Design pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, FAUUSP, André Lacroce visita semanalmente diferentes casas e lança sobre elas o olhar clínico e disciplinado de um expert em taoismo. O que ele encontra na maioria dos lares ainda é um enorme acúmulo de objetos: “A ocupação em relação ao espaço é desproporcional. Vejo paredes lotadas e coisas espalhadas. Não existe um respiro entre percepção e estímulo e, emocionalmente, o estresse reflete na casa e é um reflexo dela”, explica.

Não coincidentemente, o objetivo dos clientes é reformatar o espaço. Surge uma vontade de doar coisas e, como relata André, “de se libertar” dos objetos. O termo pode parecer exagerado, mas em certa medida somos um pouco prisioneiros de nossas posses: móveis exigem manutenção, gavetas cheias precisam ser limpas periodicamente, e uma mesa de escritório lotada pode ser um foco de incômodo visual. Em uma casa bagunçada, não achamos coisas, perdemos tempo. Assim, o peso do que armazenamos acaba sendo proporcional à falta de leveza e de mobilidade.

A busca por uma casa “sem estresse” quase sempre se confronta com a necessidade de organizar. Mas, atenção: “Especialistas em arrumação são acumuladores”, avisa Marie Kondo já no sumário de seu livro A mágica da arrumação, que se tornou um campeão de vendas em 2016.  A  escritora japonesa defende que é preciso escolher conscientemente o que entra e o que sai de um cômodo e que o movimento por uma casa (e uma vida) editada se baseia no descarte.

Paulo Azeco, designer de interiores, vê importância no vazio. É daqueles que, quando compra algo novo, tira algo antigo de casa. Mesmo trabalhando em uma das lojas mais importantes de decoração de São Paulo, a Micasa, ele resiste às tentações. “Sempre vai chegar uma cadeira nova que parece mais legal que a minha. O mais importante nessa hora é saber do que você gosta, e para isso é preciso certa maturidade estética”, conta.

Nova relação com o espaço
Na casa editada, hierarquizar é preciso. E a época atual é propícia para essa tendência: no Brasil, vivemos um período de crise econômica, e mundo afora o consumismo (ao menos enquanto ideologia) anda meio “fora de moda”. Especialistas apontam para um cenário de uma nova consciência relacionada ao comprar (temas como sustentabilidade e comércio justo estariam nos afastando do acúmulo desenfreado). “Não é que comprar não traga satisfação, mas o consumo tem um limite. Ele pode trazer conforto, mas a ideia de satisfação é transitória”, lembra a semioticista, professora da USP e da PUC-SP, Clotilde Perez.

Responsável pela área de arte da Micasa, Paulo percebe uma mudança em relação ao que as pessoas querem comprar: “Antes o efêmero estava em alta, importava mais o que estava na moda. Hoje a busca é por objetos perenes, por uma linguagem que dure mais. Foi-se o tempo daquele design meio showcase”.

Fabio Mariano lembra que a simbologia da casa está associada com a ideia de refúgio, mas que ela também representa um lugar de encontro conosco. “Aos poucos o lar está deixando de ser um lugar de exposição de si para virar o lugar da experiência. Estamos menos focados na manifestação estética do que temos e mais voltados para a harmonia do agora”, lembra.

Um dos sócios do escritório de arquitetura 23 SUL, de São Paulo, Lucas Girard, compartilha esse ponto de vista. Em seus projetos e na vida pessoal, o arquiteto foca no que faz sentido prático. “Cada vez moramos em espaços menores, é preciso entender o que é fundamental. Tenho um filho de 3 anos, a estratégia na minha casa foi transformar a sala no quintal dele.”

Marcas de um novo estilo
A noção de que o espaço é uma matéria valiosa é uma grande mudança na relação que temos com a casa. A tecnologia é aliada no processo de rematerializar, já que muita coisa foi parar em HDs. Visita após visita, André Lacroce repete: “Não é todo vazio que precisa ser preenchido”.

A informação dialoga com a cultura oriental, que inspira as criações do 23 SUL. Menos Formica e mais madeira crua, pisos monolíticos lisos, o uso do branco em paredes para ampliar o espaço. “Na arquitetura japonesa existe uma ética de projeto montada para o bem-estar. Prevalece a vontade de simplificar e potencializar a experiência de convívio”, avalia Lucas Girard.

Assim como acontece com a arquitetura japonesa, o design escandinavo também vive seu auge. Em geral, os ambientes são mais harmoniosos, mas quando misturados com a nossa cultura, deixam de lado tanta monocromia. “Na casa editada, com mais espaço livre, pintura, revestimento e todo tipo de materialidade estrutural ganham destaque. Com o vazio, abre-se uma nova dimensão para a criatividade”, finaliza Clotilde.


Créditos: Casa e Jardim