Apesar da presença secular na cultura muçulmana, o hijab (tradicional véu usado pelas mulheres islâmicas) era praticamente ignorado pela moda ocidental. Mas aí veio Halima Aden, com 1,66m de altura, 20 anos recém-completados, sorriso sincero com aparelho nos dentes e rosto estonteante, e quebrou preconceitos, tornando a peça um instrumento de libertação e inclusão. “Usar o hijab é uma escolha minha. E, agora, ele finalmente tem um rosto, uma voz nos desfiles”, me conta, antes de posar para a Vogue Brasil, em Nova York.
Em um ano de carreira, ela vem fazendo história e coleciona feitos inéditos até o seu début nas passarelas. Halima foi a primeira modelo a desfilar de hijab para grandes marcas nas semanas de moda internacionais (em fevereiro passado, participou das apresentações da Yeezy, a label assinada por Kanye West para a Adidas, em Nova York, e das grifes Alberta Ferretti e Max Mara, em Milão), assim como foi a primeira a aparecer com o véu na capa de uma Vogue (a Arábia), em junho.
No mês seguinte, estampou a capa de uma revista de beleza (a americanaAllure), em setembro a da Glamour americana e, no mês passado, veio mais uma importante conquista: ela entrou para a respeitadíssima lista das 500 pessoas mais influentes da indústria da moda mundial publicada pelo site Business of Fashion.
“Ainda estou me beliscando para ver se tudo não passa de um sonho”, brinca. “É maravilhoso ver como a moda se tornou mais inclusiva. Muitas meninas ainda não sabem que podem usar seus hijabs e, ainda assim, seguirem a carreira de modelo. Nas revistas, nos outdoors, não existia uma mulher de hijab. Abri essa porta”, orgulha-se.
A história de Halima é digna de best-seller. Sua família vivia do pastoreio nas cercanias de Kismayo, na Somália, até que a cidade, porto estratégico no oceano Índico, acabou virando palco de uma guerra civil que se espalhou por todo o país africano durante a década de 90.
Em 1993, seus pais se juntaram a outros somalis e cruzaram a fronteira a pé, em uma jornada que durou quase duas semanas, até chegarem a um campo de refugiados da ONU em Kakuma, no Quênia, um dos maiores do mundo – atualmente, abriga cerca de 180 mil pessoas.
Foi ali que nasceram Halima, em 1997, e seu irmão, três anos depois. Foi ali também que ela teve suas primeiras aulas de diversidade, convivendo com crianças de diferentes religiões e partes da África.
Aos 7 anos, Halima, a mãe e o irmão conseguiram imigrar para os Estados Unidos. Se estabeleceram em St.Cloud, no Estado de Minnesota – uma cidade com cerca de 65 mil habitantes, onde sua mãe tinha amigos entre a comunidade muçulmana local.
Mais ou menos nessa época, ela também começou a usar hijab, seguindo o exemplo materno. “Ser muçulmana na América não foi a coisa mais fácil do mundo, somos apenas cerca de 1% da população do país”, diz. “Crescer sem ver ninguém como eu representada na moda ou no cinema às vezes me fazia pensar que havia algo de errado comigo, com o jeito que eu me vestia. Me perguntava: por que não me encaixo? Estou assim tão longe dos padrões de beleza?”
Halima passou a adolescência entre a escola e trabalhos no serviço de limpeza de hospitais. No ano passado, prestes a concluir o ensino médio, já de olho em uma vaga na St. Cloud University, onde queria estudar, decidiu se candidatar ao título de Miss Minnesota, que concede bolsas de estudo para as vencedoras.
Desafiando estereótipos, vestiu seu hijab, algo que nunca havia sido feito no concurso. Como as roupas de banho comuns também não combinam com sua interpretação do islã (ela se veste seguindo os códigos muçulmanos de modéstia), Halima perguntou aos organizadores do evento se poderia usar algo com um pouco mais de cobertura. “Sem problemas” foi a resposta.
Nas semifinais, na etapa de maiô do concurso, ela optou então por usar um burquíni acompanhado do hijab. Não venceu, mas criou enorme buzz na internet e, no dia seguinte, já recebeu uma ligação da IMG Models, mesma agência que representa top models como Gigi e Bella Hadid.
Na sequência, veio o convite para posar para a CR Fashion Book, revista dirigida por Carine Roitfeld, ex-diretora de redação da Vogue Paris. O fotógrafo Mario Sorrenti, responsável pela edição, de tão encantado que ficou com Halima, de pronto quis colocá-la na capa. Foi seu primeiro editorial profissional. “Eu não cresci querendo ser modelo, nunca tinha imaginado que isso poderia me acontecer. Essa carreira caiu no meu colo, e acho que muitas meninas se identificaram com a minha história.”
Dentro da comunidade muçulmana, Halima conta que, apesar do estranhamento inicial, virou um exemplo de superação. “No início, me falavam para não seguir esse caminho, essa foi a parte mais difícil para mim. Quando comecei a investir na carreira de modelo, ninguém sabia o que esperar. Mas, quando as fotos começaram a sair, e viram que eu continuei usando o hijab, que eu tinha me mantido fiel a mim mesma, tudo ficou mais fácil.”
A publicidade também se rendeu a ela: Halima estrelou campanhas daAmerican Eagle e da Nike e, no mês passado, estreou como um dos rostos da Fenty Beauty by Rihanna, linha de beleza da cantora lançada durante a semana de moda de Nova York.
“Parece coincidência, mas não é: a Rihanna realmente é a minha cantora favorita, sei quase todas as suas músicas de cor! E ela é tão doce pessoalmente, trabalhar com Rihanna foi umaexperiência inesquecível”, me conta empolgada.
Atualmente se dividindo entre as atividades da carreira de modelo e palestras por escolas e universidades dos Estados Unidos, Halima apoia uma série de causas humanitárias em sua conta no Instagram (@kinglimaa, que tem atualmente mais de 390 mil seguidores) e sonha trabalhar para o Unicef.
“Quero voltar aos campos de refugiados para poder levar a felicidade e a esperança que um dia precisei.” Ela confessa que ainda não está acostumada com a ideia de ter virado padrão de beleza. “A gente tem que se amar pelo que é e enxergar a beleza que existe dentro de nós. Você não precisa da legitimação de uma revista ou de uma propaganda, nem de likes no Instagram para se sentir bela. É uma questão de se enxergar como dona de si mesma. Você é a pessoa no comando da sua própria imagem”.
Hoje vista como símbolo para toda uma geração, Halima, que considera seus ídolos na moda a modelo americana (plus size) Ashley Graham e a canadense Winnie Harlow (portadora de vitiligo), ressalta que não tem a pretensão de ser um símbolo de todas as mulheres muçulmanas.
“Não somos todas as mesmas, e não acho que uma só pessoa possa representar um grupo inteiro. Mas acho que muitas mulheres, da minha e das mais variadas crenças, olham para mim, veem a minha trajetória e pensam: ‘Quem diria?’.”
Styling: Tanya Ortega
Beleza: Charlotte Willer
Créditos: Vogue