Tal qual Dom Quixote de la Mancha, os franceses têm o seu próprio inimigo invisível: um dragão de fogo implacável chamado canicule. Foi assim que eles batizaram as ondas de calor que assolam o país no verão. Mas, nos primeiros dias da nova estação, enquanto o resto do país se trancava em casa ou andava pelas ruas com olhos semicerrados, à moda dos filmes de faroeste, um pequeno rincão passava incólume pelo térmico monstrengo. Localizado no extremo sudoeste do território francês, o País Basco é uma redoma de frescor — não só em termos de temperatura.

A oeste, o Oceano Atlântico empurra uma brisa que vem bem a calhar no verão. A leste um cinturão de bosques verdejantes ajuda a baixar as temperaturas. E, ao sul, a cadeia de montanhas dos Pirineus (que começa ali e atravessa toda a fronteira com a Espanha até o Mar Mediterrâneo) ajuda a manter tudo mais agradável. O resultado é um inverno que não passa de 0°C e um verão em torno dos 25°C.

É também o Oceano Atlântico o responsável pelos milhares de surfistas que aportam de furgão nas cidadezinhas da costa basca, dando um clima de férias a qualquer época do ano. Afinal de contas, é por lá que acontecem algumas das competições mais importantes do mundo e foi exatamente nesse ponto do litoral que a arte de equilibrar-se sobre as ondas chegou na Europa.

Apesar de menos conhecida no Brasil do que a porção de seu território vizinho em domínio espanhol (a parte do País Basco que toca à Espanha é também bem mais robusta do que a da França), a região é uma das mais versáteis do país. Consegue ter, ao mesmo tempo, um ar muito contemporâneo, com lojas bacanas e companhias de dança modernas que rodam o mundo, e tradições bem rurais, como danças e músicas típicas, arquitetura muito particular e competições de força curiosas, que premiam fortões que conseguem levantar toda sorte de coisas: de garrafões de leite a sacos de feno.

Do surfe aos doces de luís XIV

Para sorte e deleite dos turistas, as três maiores cidades do País Basco francês, localizadas mais ao sul da região administrativa da Nova Aquitânia, são diametralmente diferentes entre si. Bayonne, porta de entrada para quem vem do norte, é a maior delas. Biarritz é a mais chique, com casarões imponentes que refletem sua ocupação ao longo da História. E Saint-Jean-de-Luz é, digamos, o coração da região.

E, estando na França, é preciso fazer como os franceses. E isso significa ser, acima de tudo, um gourmand! A história do chocolate no país começou em Bayonne, cidade que reúne grandes mestres do ofício. Isso sem falar nos macarons que conquistaram Luís XIV (fabricados ainda hoje pela mesma família, sob a mesma receita), o licor de nozes e mel, os frutos do mar, a pimenta de Espelette, os mouchous de amêndoas… Bom apetite. Ou melhor, boa viagem.

Macarons para o Rei Sol na vila de pescadores

Diques. Proteção foi construída a mando de Napoleão III, para controlar a força do mar – Hotel DuPalais/Divulgação

Em Saint-Jean-de-Luz se tem uma noção mais forte do espírito basco. A começar pela Igreja Saint-Jean-Baptiste, a única nas três cidades que respeita à risca a marcante arquitetura da região. Fugindo da tradição católica, que estabelece assentos mais altos para famílias mais nobres, a paróquia tem enormes galerias de madeira escura em toda a igreja, e que são ocupadas exclusivamente por homens.

As mulheres, consideradas “guardiãs do sagrado”, assistem às missas no térreo, em cima das tumbas de suas famílias. A figura feminina sempre teve importância no País Basco. Até antes da Revolução Francesa, quem herdava a casa da família por lei era o primogênito, homem ou mulher.

— E a mulher herdava mesmo. Não o marido, que vinha de outra família, como acontecia em outros lugares. Como o direito de voto era por casa, também eram elas quem detinham esse poder. O País Basco era muito moderno para a época — conta a guia basca Joana Indaburu.

A igreja tem importância histórica. Ali, Luís XIV, o Rei Sol, se casou com a infanta da Espana Maria Teresa, selando a paz entre as duas maiores potências da época, França e Espanha, no século XVII. A lenda diz que a antiga porta à direita do altar foi murada, a mando no monarca, para que nenhum outro casal passasse por onde os dois passaram. Na verdade, a entrada foi fechada nove anos depois do casamento, em 1669, durante os trabalhos de ampliação da igreja.

Nos quase 400 anos que nos separam, histórias engraçadas circulam por ali dando bom tempero à cidade. Apesar de primos, os dois se conheceram no dia do casamento. Ela, vestida à moda da corte espanhola, meio “bolota” — basta lembrar dos retratos feitos por Diego Velázquez —, não teria agradado ao rei, que não gostou do estado dos dentes da infanta, destruídos pelo chocolate, seu doce preferido. Já ele, como dizem na região, só tomava banho quando caía do cavalo. E há que se frisar que o Rei Sol era um excelente cavaleiro. Ou seja…

Para piorar, Luís XIV era apaixonado por Marie Mancini, sobrinha do cardeal Mazarino, que era contra o flerte do monarca e foi o arquiteto do seu casamento com a infanta espanhola. A cerimônia de três horas foi assistida de pé pelos convidados, pois não havia bancos suficientes.

Competições e danças bascas

Pode-se visitar o imóvel onde o Rei Sol passou um mês. A casa erguida por um armador naval é habitada pela mesma família desde 1643. A Praça Louis XIV, onde fica o casarão, sedia apresentações de dança basca, embaladas por acordeons e flautas e coloridas por saias e sapatilhas.

No fronton municipal — paredão presente nos vilarejos da região — pode-se assistir, às quartas-feiras, a uma partida de pelota basca, em que os jogadores usam uma cesta-luva comprida de vime. Mas, se o seu esporte for “menos Nutella e mais raíz”, não perca a chamada Força Basca. Nas competições, às segundas-feiras, homens levantam carroças, serram troncos, fazem cabo de guerra. Na Praça Louis XIV, até no inverno, há o show pirotécnico Toro del Fuego. E programa para quem tem crianças é a Grande Plage, única praia da região sem ondas grandes.

A fúria do Atlântico foi dominada ali nos tempos de Napoleão III, graças a um acidente. No século XVII, após muitas tempestades e o “sumiço” de um bairro destruído integralmente pelas ondas, o marquês de Vauban (engenheiro responsável por grandes fortificações na França) já alertara para a necessidade de um sistema de diques para controlar a força do mar. Mas, a verba era pouca, e o projeto ficou arquivado. Os diques saíram do papel em 1864, quando o filho do imperador Napoleão III quase morreu num naufrágio ali.

Mercado. Feirantes ocupam as cercanias do mercado municipal, às terças de manhã – Boris Sensamat/Divulgação

Como agradecimento a Deus e ao capitão do navio, que se afogou salvando os tripulantes, a imperatriz Eugénie presenteou a Igreja Saint-Jean-Baptiste com uma réplica da nau destruída. Está pendurada no centro da paróquia, com cordas que encolhem e esticam, conforme a umidade do ar. Dizem que os pescadores só saem para o mar depois de passar na igreja. Vendo a posição do navio, eles sabem se o tempo será bom para a pescaria.

Os bascos são um povo aventureiro. No porto, há uma réplica dos pequenos barcos usados para caçar baleias desde o século IX. Cada família tinha um arpão de uma cor diferente. Depois de morto, o animal era dividido irregularmente, de acordo com a região acertada por cada clã. Depois que as grandes baleias migraram rumo ao norte, os pescadores foram atrás, chegando à costa canadense. Os últimos registros de pesca de baleia são do fim do século XVII. Hoje há empresas que oferecem passeios de observação de golfinhos e baleias pequenas na região.

Os pescados são uma das especialidades de Saint-Jean-de-Luz. A cidade realiza festivais de atum e sardinha em julho e agosto, e tem restaurantes com cardápio de frutos do mar caprichado e lojas especializadas, como a Comptoir de la Mer. Dá para comprar conservas e pastinhas, como as de sardinhas com pimenta de Espelette (vilarejo vizinho famoso pela especiaria), rillettes de peixe com piquillos e rillettes de maquereaux (cavalas) com vinho branco basco de Irouléguy. Os preços ficam em torno de € 3. O suco de maçã basco é famoso. Era levado pelos pescadores para o mar por recomendação médica: dois litros por dia para evitar o escorbuto.

Cozinha contemporânea estrelada

Em Saint-Jean-de-Luz, gastronomia e História sempre se misturam. Na Rue de la République, o restaurante estrelado Kaiku é uma casa de cozinha contemporânea comandada pelo chef Nicolas Borombo. É o imóvel mais antigo da cidade. Não se conhece ao certo a data de construção, mas sabe-se que foi o único sobrevivente de um incêndio que arrasou Saint-Jean no século XVII.

Na época da guerra com a Espanha, a França costumava ser pilhada e incendiada. Acredita-se que a casa tenha sobrevivido porque servia como prisão — e abrigava alguns espanhóis durante o incêndio. A torre, ladeada de toras de madeira trabalhada, era ponto de observação para o mar.

A Maison Adam, aberta em 1660 também tem sua história. Na época do casamento real, o patrão mandou Gachucha, sua funcionária, levar de presente para a rainha-mãe um prato de macarons, sua especialidade. A monarca gostou tanto dos docinhos que presenteou a moça com seu terço de cristal com ouro. Mais tarde, Gachucha se casou com o sobrinho do senhor Adam, entrando para o clã.

Só a família conhece a receita, que segue inalterada. Para fechar a refeição, aposte nos queijos e licores Izarra (de ervas ou mel e nozes) e Patxaran (de maçã ou ameixa selvagem), à venda em lojas como a Pierre Oteiza (Rue de la République).

Elegância e ondas perfeitas

Surfe. Biarritz celebra 60 anos da chegada do surfe em suas praias – Emmy Martens/Prefeitura de Biarritz/Divulgação

Antes de pegar a estrada rumo ao norte (há ônibus que circulam entre as cidades, em vários horários, por € 2), um passeio se faz indispensável: percorrer a Route de la Corniche. A estrada que vai de Saint-Jean-de-Luz à fronteira com a Espanha é uma das mais bonitas da França e pode ser feita a pé ou de carro. São 12km entre as duas cidades beirando falésias que separam o mar de campos verdes, bosques e montanhas. A balade du littoral, como é chamada a rota, é percorrida em duas horas. Há transporte público para voltar, caso as suas pernas decidam se rebelar. Repare nos bunkers que pontuam a costa, usados como postos de observação durante a Segunda Guerra Mundial.

Teclelagem basca e espadrilhas

Nas cercanias de Saint-Jean, o ateliê de tecelagem da Lartigue é uma das marcas mais bacanas de tecido basco. No começo, em 1910, eles faziam só espadrilhas, as sapatilhas de sola de corda. Nos anos 1970, quase toda família da região tinha uma toalha de mesa com as cores da bandeira basca feita por eles. Nos anos 1980, o proprietário abriu o leque de opções e, hoje, aposta em produtos variados com estampas moderninhas.

A fábrica de Ascain faz visitas guiadas e tem uma loja ampla. Aliás, comprar espadrilhas no País Basco é boa pedida, não importa em que cidade esteja. Típicas da região, começaram a ser usadas há séculos pelos bascos, para levar mercadorias contrabandeadas da França para a Espanha e vice-versa. A razão? Era silencioso andar com elas pelas montanhas, reduzindo o risco de serem pegos.

Mais tarde, modelos com laços foram adotados pelas dançarinas e, hoje, há diferentes versões de espadrilhas: com salto, em couro, com estampas diferentes. A melhor notícia é que as tradicionais, feitas à mão na França, custam em média € 15.

Biarritz é o lugar mais chique do País Basco. Quem a conhece costuma compará-la a Búzios. A história é parecida, apesar de a arquitetura não lembrar muito. Biarritz era uma vila de pescadores, que ganhou notoriedade graças à imperatriz Eugénie, mulher de Napoleão III. Espanhola de Granada, ela frequentava o balneário enquanto criança. Quando casou, convenceu o imperador a construir ali uma residência de verão, atraindo a aristocracia europeia.

Brigitte Bardot está para a cidade da Região dos Lagos como Eugénie está para Biarritz. Ou seja, ela lançou a estação balneária, frequentada mais tarde por Coco Chanel, Picasso, Stravinsky, Victor Hugo, Ernest Hemingway e outros tantos nomes célebres de uma lista interminável. Por isso, a arquitetura local é uma miscelânea, formada por casarões levantados a gosto do milionário forasteiro que tinha cacife para possuir um imóvel ali. Um exemplo é a Avenue de l’Impératrice. E isso também vale no âmbito religioso, com sinagoga, igreja anglicana, ortodoxa russa etc.

Hotel reconstrói palácio imperial

O palácio imperial de 1854 pegou fogo meio século depois, mas foi reconstruído nos mesmos moldes e hoje abriga o Hôtel du Palais. Dizem que foi lá que o rei da Espanha Afonso XIII conheceu Ena Battenberg, com quem se casaria, em 1907.

Gastronomia. Frutos do mar, preparados pelo chef Jean-Marie Gautier, do restaurante Villa Eugéni, no Hotel du Palais– Hotel du Palais/Divulgação

Quem se hospeda no hotel onde Napoleão dormia pode tomar banhos de piscina de água do mar enquanto observa a vista para a praia ou relaxar no spa com produtos Guerlain — Pierre-François, o fundador da marca em 1828, foi condecorado por Napoleão III com o título de “Parfumeur breveté de sa Majesté” (perfumista oficial do imperador).

Um programa muito interessante, inclusive pelo fator surpresa, é a capela construída pela imperatriz.

— Ela é romana-bizantina-hispana-mourisca — tenta resumir a guia da capela, Isabelle Franke.

Por fora, é romana, com feitios sóbrios, o que realmente aumenta o impacto provocado por seu interior. Dentro, é adornada com pinturas bizantinas e mosaicos de azulejos, que lembram os mouros e sua ocupação espanhola. Nessa época, a França estava em guerra contra o México (o presidente Benito Juárez havia decretado suspensão dos pagamentos de juros relativos a empréstimos concedidos por diversos países). E lá há uma representação de Nossa Senhora de Guadalupe, para quem Eugénie rezou em vão pela vitória do Segundo Império francês. A santa é acompanhada por um anjo com asas coloridas conforme a bandeira mexicana.

As iniciais do casal, “N” e “E”, estão por toda parte, assim como as abelhas que representavam Napoleão III. Um grande destaque é seguramente o teto de madeira pintado de diversas cores. A prefeitura abre a capela para turistas às quintas e aos sábados, e há missas em datas especiais.

Outra similaridade com Búzios é o surfe. Corre a história de que foi por Biarritz que o esporte entrou na Europa. Em 1957, há exatamente 60 anos, a atriz americana Deborah Kerr passou uma temporada na cidade, onde deveria gravar um filme. Seu marido, o roteirista Peter Viertel, teria sido o primeiro a equilibrar-se sobre as ondas no continente, com uma prancha levada dos Estados Unidos.

Surfe no museu do oceano

Há muitos eventos marcados até o fim do ano para comemorar a data, mas lembretes permanentes estão por todo canto. O mais novo deles é a Cité de l’Ócean, museu construído num prédio moderno em formato de onda. Cinema em realidade virtual que simula o surfe, esclarecimentos sobre como a formação de um tsunami e sobre corais estão no cardápio.

Para observar o espetáculo que são as ondas da costa basca, basta subir o farol da cidade. A vista de 360°, apenas 73m acima do nível do mar, mostra que Biarritz é um divisor de águas, ou melhor, de paisagens. À direita, ou ao norte, estão as praias de areia fina que vão até Bordeaux. À esquerda, ou ao sul, vê-se uma costa mais rochosa e as cadeias de montanhas que separam a Espanha da França.

A thalassoterapia (com água do mar) e o golfe são outras tradições por lá. Graças à massiva visitação inglesa, há 16 campos num raio de 35km, incluindo o do Farol, o segundo mais antigo da Europa. E não perca os festivais mensais de Biarritz e os espetáculos de dança contemporânea da Malandrain, a companhia local.

A pâtisserie Pariès, a mesma de Saint-Jean-de-Luz, tem lojas em todo o País Basco, inclusive em Biarritz. Lá, entre o tradicional gâteau basque, os caramelos temperados com especiarias e os chocolates, o destaque vai para os mouchous, as estrelas da casa.

— Você não vai encontrá-los em outro lugar, porque foi o meu avô quem os inventou. São feitos de amêndoa e colados sem recheio quando ainda estão úmidos. Fazemos muitas receitas com amêndoas. A última foi a Espeline, que são sementes colhidas no sul da Espanha, torrificadas, caramelizadas e temperadas com pimenta de Espelettte — descreve Celine Seynaeve, da quinta geração da família.

Os Pariès se dedicam aos chocolates desde 1895, assim como outras famílias judias que vieram ao País Basco fugindo da Inquisição Espanhola.

— Meu tataravô caiu na rua, na frente de um mestre chocolatier, em Bayonne. Ele foi acolhido por essa família, se apaixonou pela profissão e, em 1914, abriu sua primeira loja — orgulha-se Celine.

Arquitetura, chocolate e o vitral da catedral

Casas. Bayonne mostra a arquitetura típica da região – Divulgação

Bayonne, a última cidade do País Basco antes de se entrar no departamento de Landes, é muito particular. Apesar de sua história e tradição, o turismo não era explorado a fundo ali até há muito pouco tempo. A situação mudou com investimentos no setor, que incluem ônibus elétricos para dar uma volta na cidade e bicicletas que podem ser emprestadas de dia na Oficina de Turismo. Tudo grátis.

A maior cidade do País Basco tem cerca de 42 mil habitantes e parece ser muito pequena. De certos pontos, é possível mesmo ver os seus limites. O coração de Bayonne se resume a três bairros: Grand Bayonne e Petit Bayonne, separados um do outro pelo Rio Nive; e Saint Sprit, que se destaca dos outros dois graças ao Rio Adour. Nas cercanias, há áreas residenciais que só foram construídas no século XX. Antes disso, era proibido levantar qualquer imóvel ali.

Uma cidade sobre a água

Há divergências sobre a origem do nome Bayonne, mas alguns acreditam que signifique “cidade construída sobre a água”. Um passeio que começa pela parte baixa da Rue Port Neuf, na Place de la Liberté, ajuda a entender a razão. Todo o lado esquerdo dessa rua tem arcos, que protegem do sol e da chuva.

Eles não estão ali por acaso. Bayonne era, na verdade, um grande pântano. No século XII, as casas eram construídas sobre arcos de madeira e pedra que serviam de palafitas. As vias usadas hoje para caminhar (o centro é reservado aos pedestres), eram canais de circulação, cheios de água. Apesar da missão ingrata, era preciso ocupar a região e usar o Rio Nive para comércio. Os problemas de enchentes só foram resolvidos em 1618, com deslocamentos artificiais dos cursos d’água.

Bayonne pode parecer antiga, mas no século XVII era moderníssima, por já ter um plano urbano feito sob medida. O projeto ditava prédios de três andares, com um andar suplementar acrescentado no século XIX. As fachadas de cinco metros de largura podem enganar e fazer quem as observa pensar que os apartamentos são pequenos, quando, na realidade, têm 25m de profundidade.

Para conhecer a arquitetura tradicional basca é preciso se afastar do centro, mas, para entender a fundo, a sugestão é visitar o Museu Basco, atravessando o Rio Nive. O prédio tem 21 salas e dois mil objetos espalhados por três andares. Ele conta a história dos esportes locais, da música, da dança, da religião (as pedras mortuárias circulares são interessantíssimas), das roupas, dos instrumentos de trabalho, das embarcações e, finalmente, das casas.

Arquitetura no Museu

Construídas com toras de madeira cruzadas, as casas eram pintadas de vermelho, com tinta feita com sangue de boi. Com o tempo, ganharam tons de verde e azul. Lá viviam a família, os animais e guardavam-se os instrumentos de trabalho. Quando o número de moradores crescia, acrescenta-se mais cômodos em um dos lados. Por isso, a maioria delas tem telhado assimétrico.

O mais curioso é que o sobrenome da família originava-se do nome da casa e não o contrário. Um dos sobrenomes mais comuns do País Basco, o equivalente ao nosso Silva, é Etxeberria, que significa “casa nova” ou “casa recém construída”. A nacionalidade e a língua bascas são consideradas assuntos sérios desde o século XIX, quando foi criada uma identidade que unia de Bayonne ao noroeste da Espanha.

— Já existia uma unidade cultural e linguística há séculos, mas a criação de uma bandeira basca e de sua identidade formal tem pouco mais de cem anos — conta a guia Sophie Lefort.

É comum, perto da fronteira, ao se perguntar para alguém se ele é francês ou espanhol, ouvir como resposta que o interlocutor é basco, como se os dois países fossem apenas uma consequência. Inclusive, há escolas bilíngues e bandeiras verdes, vermelhas e brancas por toda parte. Uma das razões é que a língua foi reprimida (não proibida, como no franquismo espanhol) por muito tempo. Falar basco tinha estigma de ser coisa de caipira, diante dos padrões ditados por Paris. Hoje a tendência é reversa: as línguas regionais estão valorizadas, e os nomes bascos voltam a batizar os bebês contemporâneos.

Rio Nive. Moradores em passeio de barco a remo: cena comum nas águas de Bayonne – Natasha Mazzacaro

Antes ou depois de visitar o museu, não perca a oportunidade de passar no Chocolat Pascal. A loja, comandada por um chocolatier fã de jazz e sua mulher, da Costa Rica, faz chocolates com cacau dos quatro cantos do mundo.

A especialidade de Pascal são os ganaches temperados com especiarias, caramelo e flor de sal, mas o cremosíssimo chocolate quente feito com água é um elixir dos deuses — mesmo para quem não tem nada contra o leite. Se a fome for maior, os dois lados do Rio Nive são o lugar certo para achar um restaurante, seja para beliscar e beber vinho ou para pratos mais consistentes. Eles funcionam até de madrugada.

Vitral renascentista

Um dos pontos turísticos mais importantes da cidade é a catedral. Erguida no século XII, foi destruída por um incêndio e reconstruída um século mais tarde em estilo gótico. No século XIX, foi ampliada. O espaço acrescentado pode ser notado pela mudança da cor dos blocos de pedra.

O vitral de Saint Jerome é o único renascentista da região. Mostra Jesus Cristo abençoando uma menina possuída pelo demônio e, nas extremidades, flores de lis, coroas e salamandras — símbolos do rei Francisco I (1494-1547), fundador do Renascimento na França.

Há oito meses, restauradores estão recuperando as pinturas da catedral assinadas por Louis Charles Auguste Steinheil, que estavam praticamente invisíveis.

— Tinha muita sujeira e verniz aplicado para consolidar a tinta. Limpamos, fixamos e restauramos as pinturas — conta a restauradora Marie Lacoste. — Descobrimos uma pintura anterior, de data desconhecida, coberta pelo trabalho de Steinheil.

Mesmo com séculos de História, o País Basco reserva boas surpresas a quem estiver disposto a descobri-las.

Créditos: Jornal O Globo